Arte do intelecto, adaptar-se é sobreviver diante do inesperado
Dizem os jargões: “O homem se adapta a tudo”, “A gente acaba se adaptando”. Será que é tão simples ou a adaptação é algo possível e importante dentro da plasticidade que caracteriza o homem, mas é limitada por sua própria marca individual?
Se nos adaptássemos a tudo, não seríamos seres únicos e, sim, consequências inevitáveis de um meio sem qualquer respeito às tendências espontâneas e às aversões naturais da unicidade. É preciso muito cuidado para não forçar o elástico do nosso movimento além do limite. Há situações com as quais não vamos nos adaptar nunca, por maior que seja a tentativa de compreensão, o esforço por entender, a luta por flexibilizar, porque está fora do nosso possível, não cabe nos quadros mentais que armam a personalidade.
Quadros mentais são as estruturas do conhecimento formadas a partir de uma espontaneidade básica que faz a criança interessar-se por tudo aquilo que ainda não conhece, sem referências ou restrições. Dentro desses quadros estão os valores, os símbolos, os significados e as imagens, enfim, o conceito de tudo o que assimilamos no correr da vida. Que muda, evidentemente, a partir de que novas assimilações, diante das circunstâncias diversas, de buscas e da generosa inquietação, alterem o já existente.
Mutações são as re-significações dos conceitos que transformam valores e imagens. Adaptação é uma atitude da inteligência – como dizia Piaget – diante de uma situação inesperada, de um quadro que não estaria nos mecanismos de assimilação.
Adaptamo-nos quando conseguimos adequar o acontecimento não desejado, que não possui a adesão da vontade aos quadros mentais, de tal forma que a nossa vida segue o seu caminho “quase normal”, já que conseguimos estar bem, trabalhando os objetivos, elaborando quereres e procurando interesses. Digamos que até felizes. Mas no sonho, num devaneio, na fantasia, num plano ideal, fica sempre um resquício da situação anterior, da possibilidade de reversão, por mais inevitável tenha sido a circunstância colocada.
A adaptação é sempre temporária, ainda que dure a existência inteira. Podemos continuar sentindo a fugacidade das coisas por mais que o agravo da perenidade esteja no mundo lá fora. É verdade que, muitas vezes, uma adaptação se transforma em mutação. A isso se dá o nome maravilhoso de “recuperação”, talvez, um dos dons maiores que Ele nos concede, ao lado da própria vida e do amor.
Adaptar-se é, enfim, uma arte do intelecto, uma luta para sobreviver bem diante do inesperado. Só é preciso cuidado para que, tentando se adaptar a tudo que nos é solicitado, não acabemos estranhos a nós mesmos.
Nas fotos, a atriz Julia Roberts em cenas de “Comer, rezar, amar” (Eat, Pray, Love), filme que bem discorre sobre adaptações e recuperações /Reprodução com efeito digital