Degustação às cegas dos grandes tintos de Bordeaux da extraordinária safra de 1990 é a melhor degustação de sempre do ponto de vista técnico e, principalmente, do ponto vista do prazer
Depois de muito planejamento conseguimos reunir para uma inédita degustação no Brasil oito dos mais importantes tintos do Planeta. Estamos falando dos Grand Cru Classé de Bordeaux da lendária safra 1990. Para se ter uma ideia, a safra 1990 está entre as cinco mais importantes do pós 2º guerra mundial, ao lado da Vintage of the 20th Century 1945, e das também lendárias 1959, 1961 e 1982. Para termos os vinhos escolhidos partimos de uma análise muito detalhada, pois queríamos abordar os mais importantes terroir e castas/blends da região dessa fenomenal safra. De maneira macro, Bordeaux tem duas grandes regiões, conhecidas como margem esquerda e margem direita. Na margem esquerda existe uma série de regiões, sub-regiões e AOC’s (AOC – Appelation D’Origine Controlée), sendo as mais destacadas regiões, o Medoc e Graves. No Medoc estão as AOC’s de St Estephe, Pauillac, Saint Julien e Margaux, como as mais importantes. Já em Graves está a AOC de Pessac-Leognan, como a responsável na produção dos mais requintados vinhos de Graves, que fica localizada nas cercanias da importante cidade de Bordeaux, uma das cinco maiores da França. São dessas AOC’s, que acabamos de citar, onde temos os mais importantes vinhos de toda a margem esquerda.
Para destacar a importância da margem esquerda, na AOC Pauillac, a meca do vinho, localizada no coração do Medoc, tem três dos cinco dos Premier Grand Cru Classé da classificação de Bordeaux de 1855. São eles os Chateaux Lafite Rothschild, Mouton Rothschild e Latour. Os outros dois Premier Grand Cru Classé são exatamente de Margaux e Pessac-Leognan, respectivamente o Chateau Margaux e o Chateau Haut Brion. Esses cinco vinhos são os mais importantes e tradicionais do mundo quando o assunto é um grande vinho de Bordeaux. Vale ainda enfatizar que na margem esquerda, a casta que reina é a Cabernet Sauvignon, na grande maioria das vezes blended com Merlot, Cabernet Franc e Petit Verdot. Já da margem direita, temos duas AOC’s de onde nascem os mais espetaculares tintos a base das castas Merlot e Cabernet Franc. São elas as AOC’s de Saint Emilion e Pomerol. Nessa última AOC a Merlot reina quase absoluta enquanto que em Saint Emilion a Merlot rivaliza com a Cabernet Franc como o grande destaque. De Saint Emilion temos os ícones Chateau Cheval Blanc e Chateau Ausone e de Pomerol as estrelas são o lendário e caríssimo Petrus e o raríssimo Le Pin.
Os grandes Bordeaux 1990 que foram à mesa:
Os escolhidos e estrelas da noite foram:
Chateau Mouton Rothschild – Pauillac – Medoc – Margem Esquerda
Chateau Latour – Pauillac – Medoc – Margem Esquerda
Chateau Margaux – Margaux – Medoc – Margem Esquerda
Chateau Haut Brion – Pessac-Leognan – Margem Esquerda
Chateau Leoville Las Cases – Saint Julien – Margem Esquerda
Chateau Leoville Barton – Saint Julien – Margem Esquerda
Chateau Ausone – Saint Emilion – Margem Direita
Chateau La Conseillante – Pomerol – Margem Direita
Com esses vinhos conseguimos contemplar diversos terroir’s e castas. Além disso, o conceito foi explorar o desempenho dos Premieur Grand Cru Classé ao lado de vinhos menos disputados e com preços mais accessíveis.
O “resumo da ópera” foi: tínhamos à mesa quatro dos cinco Premieur Grand Cru Classé da classificação de 1855 (só não tivemos à mesa o também emblemático Lafite Rothschild) somados a dois deuxieume vin da mesma classificação e coincidentemente da mesma AOC, Saint Julien. São eles os Chateaux Leoville: Las Cases e Barton. Todos esses vinhos tem como “espinha dorsal” a Cabernet Sauvignon blended com Merlot, Cabernet Franc e em alguns casos Petit Verdot, essa última sempre em diminutas quantidades. A predominância da Cabernet Sauvignon nesses vinhos é sempre superior a 70%. Os dois últimos escolhidos para representar a margem direita foram: um representante de Saint Emilion, o vinho mais caro dessa AOC, o Chateau Ausone, que é elaborado com partes iguais de Merlot e Cabernet Franc e, de Pomerol, o La Conseillante, que é um Merlot predominante, com um toque importante da Cabernet Franc.
O tasting
Como de praxe éramos oito à mesa e somente um sabia, seu colunista PPOW, a ordem dos vinhos. Meticulosamente e para despistar qualquer inferência dispusemos a sequência dos vinhos sem nenhuma lógica e/ou critério, visto que o objetivo era avaliarmos todos os vinhos nas mesmas condições. Todos os vinhos passaram a noite anterior de pé em adega climatizada e foram abertos exatamente ao mesmo tempo, uma hora e meia antes de seguirem para as taças, sem decantação prévia. Todos os vinhos estavam em perfeito estado, apesar da rolha do Ausone ter se partido. Após todos vinhos servidos nas taças, os enófilos se sentaram à mesa e tiveram cerca de 30 minutos para finalizar a análise visual, olfativa e gustativa. Nossa metodologia para a noite foi que cada um dos 7 participantes escolhe-se seu primeiro lugar (medalha de ouro), seu segundo lugar (medalha de prata), seu terceiro lugar (medalha de bronze) e, por último, o vinho que menos gostou. Para o medalha de ouro foram concedidos 3 pontos, para o prata 2 pontos e para o bronze 1 ponto.
Quase unanimidade
Dos sete participantes, todos grandes e exímios degustadores, seis votaram para o 1º lugar, medalha de ouro, na amostra número 8. Um deles votou na amostra número 3 como ouro. Todos que votaram na amostra 8 como ouro, votaram na amostra 3 como prata. O inverso ocorreu no votante que concedeu o ouro para a amostra 3, que concedeu prata à amostra numero 8. Ou seja, todos os primeiros e segundo lugares foram as amostras 8 e 3. Com essa unanimidade entre os dois primeiros lugares, a disputa ficou para o bronze, que acabou ficando com a amostra número 6, com leve vantagem sobre a amostra número 4, que ficou em quarto lugar. Vamos comentar do quarto colocado para cima. A pontuação de seu colunista não foi considerada no somatório final.
A amostra 4 era nada mais nada menos que o meu vinho favorito de Bordeaux, o sempre extraordinário Chateau Latour. Um vinhaço com uma estrutura fabulosa, mas que não se destacou perante os medalhistas, por estar ainda mais jovem e de certa maneira ainda “duro” se comparado com seus principais rivais. Foi melhorando muito e quem o “guardou” na taça por mais algum tempo (mais de uma hora), pôde sentir o quanto evoluiu. Minha avaliação ao final do jantar para o Latour 1990 foi de 97 pontos. A amostra número 6, medalha de bronze, era o Chateau Ausone 1990. Diferentemente do Latour estava prontíssimo para ser apreciado, esbanjando vida, alegria, elegância, fruta madura e taninos de excepcional qualidade. Vale ressaltar aqui novamente que o mais relevante motivo de sua maturidade se dá pela presença da casta Merlot em maior proporção (50%).
Essa casta de maneira geral costuma amadurecer mais rapidamente que a Cabernet Sauvignon em vinhos dessa estirpe. Uma deliciosa surpresa que fechou a noite com minha avaliação em 96 pontos. O medalha de prata mais uma vez foi um tinto que tinha Merlot em grandes proporções (cerca de 80%). Estamos falando do inebriante, delicioso e espetacular La Conseillante. Aromaticamente se destacou também por estar milimetricamente pronto para ser consumido. Retrogosto delicioso e encantador. Minha avaliação final para esse vinho foi de 97 pontos.
O campeoníssimo e medalha de ouro, Chateau Margaux 1990, foi o vinho que mais se destacou tanto do ponto de vista aromático quanto gustativo.
Aromaticamente esse é, quase sempre, o mais sensacional tinto de toda a Bordeaux, mas em alguns casos sai “derrotado” em “boca” por vinhos mais vigorosos como o próprio Latour. Nessa noite não foi isso que aconteceu, pois realmente o Margaux se sobressaiu em tudo. Um tinto inesquecível e que está entre os mais especiais que degustei em toda minha vida. Seu final de boca é sublime, rico e quase infinito. Minha avaliação final foi de 99+. O vinho em questão não atingiu 100 pontos, pois ainda estou à procura do perfect wine, mas que não reste duvida à ninguém que esse Chateau Margaux 1990 é quase perfeito.
Unanimidade
Para o menos apreciado da noite tivemos unanimidade, com todos os sete votos para a amostra número 1. Trata-se do renomadíssimo Chateau Haut Brion 1990, que apresentou um buquê muito químico e fechado, não trazendo alegrias nos primeiros minutos do tasting. Em boca não encantou, pois estava com certa dureza. O estilo de um grande Bordeaux estava marcado pela madeira e pelo couro. Mesmo sendo o que menos brilhou na noite, foi melhorando muito na taça com o passar do tempo. Seguramente esse vinho ainda não está pronto e caso você tenha uma garrafa, espere mais cinco nos para abri-la. Não era o que esperávamos de um Haut Brion de uma grande safra. Pessoalmente o Haut Brion nunca foi de meus favoritos dentre os grandes tintos de Bordeaux.
Conclusões do Colunista (non blind tasting)
O tema The Best Ever não foi por acaso, pois o que vale ressaltar aqui, além das conclusões da análise dos melhores tintos, degustados blind, apresentadas acima, é ressaltar que todos os vinhos apresentados estavam excelentes e todos à mesa concordaram como a mais técnica e especial degustação às cegas de todos os tempos de nosso time de degustação. Mesmo o Haut Brion 1990, que mesmo desprezado unanimemente por todos, teve de seu colunista a importante avaliação com 92 pontos. O Chateau Mouton Rothschild 1990 fechou a noite com nota 95, sendo uma especial surpresa, o Chateau Leoville Las Cases 1990 com 94 pontos foi bem, mas todos nós esperávamos mais dessa garrafa e, por último, o Chateau Leoville Barton, também estava muito bom e recebeu minha avaliação de 93 pontos. Manter o nível com oito vinhos todos acima dos 92 pontos é “coisa” muito rara. Mais raro ainda é em uma degustação de oito vinhos termos à mesa cinco acima dos 95 pontos. Tivemos uma noite inesquecível. Que venham mais degustações como essas.
(O sempre imponente Chateau Leoville Las Cases 1990) &