Em um encontro enogastronômico o cuidado deve ir além da harmonização, sendo preciso também ter atenção com a sequência dos vinhos à mesa. Em um jantar com vários vinhos e vários pratos esse cuidado deve ser redobrado, pois se a ordem de intensidade dos vinhos não for respeitada, é bem provável que não se consiga aproveitar as qualidades e diferenciais de cada um deles. Resumindo, é possível acontecer de um vinho “matar” o outro.
Isso é um fator técnico e é por isso que a cultura da enogastronomia só cresce nos últimos tempos. Não devemos em momento algum ser radicais quando o assunto é harmonização entre um vinho e um prato, mas não devemos cometer alguns erros, que sem dúvida podem causar em seu palato pura desarmonia. Ostras frescas com Merlot não dá! Linguado grelhado com Cabernet Sauvignon nem pensar!
Pois bem, além das técnicas de harmonização entre pratos e vinhos, a ordem de intensidade dos vinhos servidos deve ser seguida à risca. Para não errar, algumas regras simples podem ser seguidas. Vinhos mais leves como espumantes e brancos de preferência são servidos no início, e, seguindo uma escala crescente, passar por rosés (opcionais) e tintos e, finalizar, caso seja o caso, com vinhos doces ou fortificados. Da mesma maneira que não podemos cometer erros crassos quando o assunto é harmonização, o mesmo vale para a sequência dos vinhos à mesa. É claro que a harmonização tem papel fundamental nessa hierarquia e sempre deve ser levada em consideração.
Para iniciar uma bela refeição existem algumas alternativas, mas a mais fácil e que não deixa sombra de dúvida é começar sempre com um espumante. Champagne Brut, Cava, Franciacorta, Prosecco e espumantes de uma maneira geral são escolhas que não nos levam ao erro. O espumante em questão deve ser leve e por isso não é recomendável iniciar com um Champagne Vintage ou Millèsime, de safra única, que são quase sempre mais encorpados. Se, por exemplo, começarmos com um Dom Perignon, a responsabilidade da sequência dos vinhos será mais complexa com relação à intensidade do que irá suceder esse encorpado Champagne. Começar com um bom espumante brasileiro é uma ótima sugestão, já que os espumantes são o que temos de melhor por aqui.
Ainda para começar um encontro à mesa temos outras alternativas. Talvez Espanha e Portugal sejam os países que mais opções dão para se iniciar uma refeição. Recepcionar os convidados com uma taça de Jerez, que deve ser somente o Fino ou a Manzanilla, é uma verdadeira delícia. Esse hábito é bastante comum na Espanha e ‘vale a pena’ experimentar. O cuidado que se deve ter é o mesmo citado acima. Existem opções de Jerez como Amontillado ou Palo Cortado que além de fortificados são muito intensos.
Em Portugal, outro exemplo especial. Começar com um Vinho do Porto branco seco é um ótimo início. Em eventos especiais em Portugal serve-se um cálice de Porto Branco ao primeiro contato com os convidados. Um luxo!
Resumindo, o início ideal são as borbulhas ou vinhos secos fortificados, pois tanto o Fino quanto o Vinho do Porto recebem aguardente vínica durante a fermentação. Para os que não são amantes dessas duas maravilhas, temos que partir para os vinhos brancos de mesa, ou seja, vinhos sem borbulhas ou sem adição de álcool.
Nesse ponto todo cuidado é pouco, pois iniciar um evento enogastronômico com um Chardonnay daqueles super oakies (amadeirados) não é uma grande pedida. A sugestão para uma sequência feliz é iniciar com um vinho branco leve, que não tenha madeira. A sensação dos últimos tempos são os vinhos produzidos à base da versátil Sauvignon Blanc, que com seu caráter mineral e na maioria dos casos com toques cítricos é ideal para amaciar nosso palato para uma sequência crescente à mesa.
Os melhores Sauvignons Blancs do mundo hoje, logo após os franceses, são os da Nova Zelândia e África do Sul. O primeiro país está consagrado, mas tem que se cuidar, já que os vinhos à base da Sauvignon Blanc que vêm do país de Mandela estão cada dia mais espetaculares.
As alternativas para os vinhos Sauvignons Blancs são os deliciosos Albarinõs do norte da Espanha, os vinhos verdes de Portugal, os Muscadets do Vale do Loire, na França, os Soaves do norte da Itália, mais precisamente do Vêneto e finalmente os Orvietos do centro da Itália.
No Brasil os vinhos à base da uva Sauvignon Blanc têm evoluído muito, tanto os provenientes do Rio Grande do Sul quanto os de Santa Catarina, que a propósito tem produzido excelentes brancos.
Após um início glamuroso, chega a hora do segundo vinho. Aqui as alternativas ganham centenas, talvez milhares de candidatos. Mais uma vez dependendo da harmonização, um branco com corpo é quase que fundamental para se ter uma sequência melodiosa à mesa.
A Chardonnay chega agora com pompa e circunstância. O ápice sem dúvida é degustar um bom Chardonnay da Borgonha, berço dos mais maravilhosos brancos do planeta. Quem ainda não provou um Mersault ou um Puligny Montrachet não tem idéia do que um vinho branco pode nos propiciar. Geralmente estamos em frente de vinhos que têm muita fruta, toques minerais e uma ‘crocância’ incrível, proveniente do carvalho em que foram envelhecidos.
Podemos encontrar bons vinhos à base da uva Chardonnay em todo o mundo, mas os melhores são dos EUA, Itália, Austrália, Chile, Argentina e África do Sul.
Como alternativa para um grande branco temos nos vinhos da Alsácia uma grande sugestão. Dentre todas as uvas da Alsácia a que mais tem destaque é a Riesling que pode ultrapassar a Chardonnay para aqueles que preferem vinhos com caráter mineral ainda mais acentuado. Essa uva tem ganhado muitos adeptos nos últimos anos.
Não podemos deixar de mencionar um bom Bordeaux branco de estirpe da região de Pessac/Leognan ou Graves como uma boa alternativa quando o assunto é vinho branco encorpado e rico.
O vinho Rosé vem há décadas tentado voltar à cena e tem conseguido uma boa evolução à mesa de especiais eventos da enogastronomia. São vinhos quase sempre ‘descomplicados’ e sem grande intensidade. Podem, dependendo do produtor, ser até uma boa companhia tanto para o início de uma bela refeição quanto para o 2º vinho. Não deve ser degustado depois de um grande branco, pois nesse caso estaríamos errando na sequência dos vinhos.
Chegamos ao vinho queridinho de 9 entre 10 apreciadores desse líquido abençoado, o vinho tinto. Além de ser mesmo o tipo de vinho mais tradicional é sem dúvida o que mais faz bem ao nosso organismo. A quantidade de polifenóis encontrados na casca da uva tinta é em média o dobro do que é encontrado na uva que produz um vinho branco. Às vezes pode chegar a cinco vezes mais. É o caso da uva Sagrantino de Montefalco que disputa com a Cabernet Sauvignon chilena como a uva que mais polifenóis possui. Os polifenóis são excelentes para o nosso sistema cardiovascular.
No admirável mundo dos tintos temos uma gama enorme de vinhos, desde leves, como os à base da uva Gamay, até os ultra-encorpados Cabernet Sauvignons, Merlots e cia. ltda.
Para os amantes de vinhos mais elegantes não podemos deixar de falar da Pinot Noir, que reina absoluta na Borgonha. Sem dúvida é a partir dessa uva que podemos encontrar os mais intrigantes e enigmáticos vinhos em todo mundo. A uva Pinot Noir é muito controversa, pois muitos especialistas acreditam que só a Pinot Noir da Borgonha é que produz grandes vinhos. A verdade é que muitos países nos últimos anos têm se dedicado a essa uva, como EUA (Russian River Valley na California,), Nova Zelândia (Ilha Sul) e recentemente o Chile (Vale de Leyda e Limarí). Eles vêm colocando no mercado bons exemplares a partir da Pinot Noir.
O xodó dos xodós é a uva Cabernet Sauvignon, estrela nos 4 cantos do mundo. Originária de Bordeaux, no Sudoeste da França, onde produz os mais disputados vinhos da terra, essa uva é destaque nos EUA e Chile, e tem plantações na Itália, Espanha, Portugal, Argentina, África do Sul e Austrália. No Brasil essa uva também tem um papel importantíssimo e é a partir dela que podemos encontrar talvez os melhores tintos brasileiros. De caráter tânico, herbáceo e com especiarias, quase sempre tem aromas e sabores de frutas como groselha e cassis. Conquistou o paladar de todos os amantes de vinho.
Entre esses dois opostos, de um lado a delicada e fina Pinot Noir e do outro a austera, profunda e encorpada Cabernet Sauvignon, temos inúmeras outras maravilhas.
Como a multifuncional Merlot que produz desde vinhos espetaculares até exemplares sem expressão. Alguns exemplos são as espetaculares nativas italianas como a Nebbiolo e a Barbera (rainhas no Piemonte), a Sangiovese (majestade na Toscana) e as menos prestigiadas, porém especiais Aglianico e Negroamaro no sul, e a especialíssima Corvina, base de um dos vinhos mais únicos do Planeta, o Amarone.
Na Espanha temos a uva Tempranillo, que está presente em todas as regiões, e em Portugal a sensacional indígena Touriga Nacional. Na América do Sul, temos no Chile a Cabernet Sauvignon e a nova sensação Carmenère, na Argentina a flagship Malbec e no Uruguai a Tannat. Todas essas uvas têm origem do sul da França e hoje são ícones em nosso continente.
Uma outra opção é a Syrah, também conhecida como Shiraz em alguns países do novo mundo. Possui a potência e a profundidade do Cabernet Sauvignon (sem aqueles quase indomáveis taninos) e os aromas explosivos e as sutis complexidades da Pinot Noir. Normalmente os vinhos à base dessa uva são vendidos por menos que os equivalentes de suas rivais e, em adição, por sua sensibilidade ao terroir (termo que inclui solo e condições climáticas) produz diferentes tipos de vinhos dependendo de sua origem. A Syrah hoje é a grande bola da vez.
Uma regra geral, salvo raríssimas exceções, é sempre bom degustar o vinho mais elegante antes de um mais robusto. Para se ter uma ideia, a ordem para os tintos seria, de uma maneira geral, a seguinte: primeiro um Pinot Noir, no intermezzo podemos ter um Nebbiolo, um Sangiovese, um português de raça do Douro ou um Tempranillo. Na sequência, um Shiraz e para finalizar um Cabernet Sauvignon ou blend Bordolês (esse blend normalmente possui as uvas Cabernet Sauvignon e Franc, Merlot e Petit Verdot). Degustar um jovem Pinot Noir da Borgonha depois de um bom Bordeaux é falha grave, pois ao chegar ao Pinot Noir elegante e sutil após o tânico e intenso Bordeaux seu palato iria ficar muito confuso. Pense simples. Podemos ter antes de uma leve vitela uma picanha “gorda” grelhada? A resposta é não, pois seu palato tem que acompanhar uma sequência. A vitela ficaria penalizada e sem expressão após a intensa e marcante picanha.
Para finalizar a sequência de um grande evento em que o vinho é o destaque, não podemos deixar de falar dos vinhos doces, ideais para encerrar uma refeição. Nesse quesito temos dois grandes grupos: de um lado, os vinhos doces elaborados a partir de uvas com muita concentração de açúcar e, de outro, os vinhos fortificados, que nada mais são que os produzidos com a adição de aguardente vínica durante o processo de fermentação.
Os doces não fortificados são os renomadíssimos Sauternes, elaborados a partir de uvas botritizadas, atacadas pela podridão nobre (fungo Botritys Cinérea), os late harvest (colheita tardia) e os passitos (produzidos a partir de uvas quase passas). Esses vinhos são deliciosos e podem tanto acompanhar queijos quanto sobremesas, principalmente aquelas à base de frutas.
Dos fortificados, o mais imponente e prestigiado vinho do mundo é o famoso Vinho do Porto que tem fãs em todos os países. Na Inglaterra ele é quase uma religião e faz parceria perfeita com o queijo local, o Stilton, de massa azul. Podemos finalizar com um Porto uma refeição tanto com sobremesas mais fortes, como as que são à base de chocolate, quanto acompanhando queijos encorpados.