Com gancho histórico, Javier Cercas constrói um interessante e audacioso romance

Em 23 de fevereiro de 1981, o futuro da Espanha ficou em suspense por algumas horas. Durante a eleição do presidente que daria continuidade à redemocratização do país – depois de mais de trinta anos de ditadura franquista e de um governo de transição com Alfonso Suárez -, a câmara dos deputados, em Madri, foi tomada de assalto por guardas civis liderados pelo tenente-coronel Antonio Tejero, que interromperam a votação de seu novo líder dando notícia de um golpe de Estado. O “23-F”, como ficou conhecido, fracassaria já no começo do dia seguinte, mas isso não impediu que o episódio ficasse marcado na história do país: as filmagens oficiais foram parcialmente transmitidas pela televisão estatal e se incorporaram à memória coletiva do povo espanhol.

A partir do gesto simples do ex-presidente Suárez, de permanecer sentado na câmara em meio a uma saraivada de tiros, o escritor Javier Cercas constrói seu mais novo romance, Anatomia de um Instante (tradução de Ari Roitman e Maria Alzira Brum; Editora Biblioteca Azul, 436 páginas, R$ 49,90), traduzido para oito línguas e vencedor do Prémio Nacional de Narrativa (Espanha) de 2010 e do Prêmio Salone Internazionale del Libro (Torino, Itália), em 2011, entre outros. “O realmente enigmático não é aquilo que ninguém viu, mas aquilo que todo mundo viu e ninguém consegue entender por completo”, propõe Cercas, indagando-se a respeito do significado do gesto de Suárez, que ampara toda a narrativa do livro.

Abrindo mão de uma historiografia que se fixa em versões oficiais coerentes, o escritor tece uma trama complexa de eventos que rodeiam o 23 de fevereiro. Retrata os diferentes personagens e esmiúça as múltiplas motivações do golpe, tecendo um livro híbrido, entre o romance e o ensaio.

A conjuntura política que levaria ao dia fatal se distende em histórias de cada um dos principais agentes, formando o que chama de “placenta” do golpe; as expectativas de Suárez no governo de transição tornam-se mais densas à luz de sua trajetória política; as dúvidas a respeito da participação do serviço de inteligência ecoam; a relação do então presidente com seu homem de confiança, o general Gutiérrez Mellado, ganha contornos íntimos na narrativa que abarca sua convivência em La Moncloa, sede da presidência; relatórios, telefonemas, alianças, reuniões sucedem-se em uma narrativa tensa e reflexiva, de forma que o livro, apoiado nos fatos históricos, alcança uma dimensão romanciada por seu tratamento literário, muito semelhante ao que Truman Capote fez com A Sangue Frio.

Anatomia de um Instante analisa literariamente as entranhas do poder, questionando a todo mundo o lugar da ficção da História – com H maiúsculo.

Javier Cercas, autor de "Anatomia de um instante"

Javier Cercas, autor de “Anatomia de um instante”

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