Para os amantes dos vinhos, as degustações às cegas são sempre um aprendizado
Para não “beber” rótulo, entender seu próprio paladar e principalmente quebrar o padrão de que o que crítico do vinho fala é verdade absoluta, a degustação às cegas é, ao mesmo tempo, um exercício de humildade e de coragem. É quando surpresas inesperadas acontecem e nos abrem a cabeça para novas possibilidades, sem preconceitos.
As degustações às cegas podem ser de qualquer tema, mas os mais técnicos recomendam não misturar muito, para que não aconteçam muitos desvios e divagações. Pessoalmente, recomendo sempre entre amigos realizar degustações às cegas para aguçar principalmente seu “autoconhecimento” sobre vinhos. Os temas das degustações podem ser vários, por exemplo, sobre regiões, como Borgonhas (da França) e Super Toscanos (da Itália). Ou ainda sobre uvas, como a Malbec, a Chardonnay, a Pinot Noirs, etc. Já partindo para as degustações mais estruturadas temos algumas modalidades bem interessantes. A mais técnica de todas é a Degustação Vertical. Essa prática é simples, ou seja, é obrigatório que de um mesmo vinho você prove várias safras diferentes. Uma horizontal é a degustação de vinhos similares de uma mesma safra. Por exemplo, de tintos italianos da safra 2004. Horizontais e verticais são sem dúvidas as degustações às cegas mais interessantes, e até divertidas, de serem feitas.
Atenção para não misturar brancos com tintou e ou roses. Degustar um fortificado como o Vinho do Porto ao lado de um tinto seco não acrescenta nada.
Recentemente um grupo de enófilos de carteirinha, do qual faço parte, organizou uma degustação às cegas de um dos mais importantes vinhos do mundo, o Chateau Montrose, de Bordeaux.
Bordeaux: o berço dos mais desejados vinhos do Mundo
Para falar do Chateau Montrose e de St. Estephe é preciso antes localizá-los em Bordeaux e assim explicar sua importância entre os grandes vinhos dessa Região. Os vinhos produzidos nos suntuosos castelos de Bordeaux, muitos com mais de 300 anos, foram classificados em 1855 em cinco categorias que desde então só tiveram uma mudança: em 1973. Foi quando promoveram o lendário Chateau Mouton Rothschild a 1er Grand Cru Classé. O Mouton era um segundo (2ème Vin), mas seu proprietário o saudoso Barão Philipe de Rothschild nunca se contentou em ver seu vinho nesta posição.
Os primeiros vinhos desta classificação, os 1ers Grand Cru Classé, continuam sendo os principais expoentes de Bordeaux que estão entre os vinhos mais fascinantes, longevos e disputados do planeta. Estamos falando dos Chateaux: Lafite Rothschild, Mouton Rothschild, Latour, Margaux e Haut Brion. Os 3 primeiros são da pequena comuna de Paulliac, a ‘meca’ do vinho do Medoc, enquanto o Margaux fica na região de mesmo nome e o Haut Brion é o único não Medoc dos cinco, pois fica localizado na grande Bordeaux, mais precisamente na AOC (Appellation d’origine contrôlée) de Pessac-Léognan.
Além dessas sub-regiões, de Paulliac, Margaux e Pessac-Léognan, ainda temos na Grande Bordeaux (margem esquerda) dois verdadeiros berços de vinhos espetaculares com prestígio de 1er Grand Cru Classé. São as sub-regiões de Saint Julien e St Estephe.
Nessas duas pequenas Appellation Controlée existe uma grande gama de vinhos, mas são delas os 2ème (segundos vinhos da classificação de 1855) mais imponentes, expressivos e que estão mesmo quase no nível dos 1er Grand Cru Classé. Em algumas safras especificas alguns desses 2ème suplantam os 1er em qualidade.
Dos 2ème Vins da classificação oficial de 1855 temos de Saint Julien os espetaculares Chateau Leoville Las Cases , Leoville-Poyferré e Leoville-Barton, o sólido Chateu Gruaud-Larose e o voluptuoso Chateu Ducru-Beaucaillou. Já de St Estephe temos 2 obras primas, que rivalizam de maneira sadia e extraordinária, os sublimes Chateau Cos D’Estournel e o Chateau Montrose.
O Chateau Montrose
Localizado no noroeste da Appellation Controlé de St. Estephe, esse Chateau é desde 2006 de propriedade da família Bouygues. As vinhas ao redor do Chateau Montrose compõem 68,5 hectares com as castas plantadas distribuídas em: 64% Cabernet Sauvignon, 31% Merlot, 4% Cabernet Franc e 1% Petit Verdot, com uma média de idade de 45 anos e 9.000 plantas por hectare.
O Chateau produz anualmente entre 150.000 e 200.000 garrafas de seu primeiro Vinho, o Chateau Montrose e, entre 85.000 e 160.000 garrafas de seu segundo vinho, o La Dame de Montrose.
A inspiração e a Surpresa
Quando começamos a planejar nossa vertical de Montrose elegemos um vinho que foi o inspirador, o Chateau Montrose safra 1990 e a partir dele fomos consultando os confrades. A pergunta para os 8 membros foi: qual safra de Montrose você tem? Além disso, decidimos que além de Montrose iríamos colocar um coringa e o coringa escolhido, obviamente, foi o Cos D’Estournel. Daí surgiu uma idéia. Por que não fazer uma vertical com 7 Montrose de safras diferentes e um Cos D’Estournel da mesma safra de um dos Montrose escolhidos.
De maneira muito rápida as respostas começaram a chegar e os Montrose apresentados foram:
1982, 1989, 2000, 2001, 2003 e 2005. E o Montrose 1990? Infelizmente nossa fonte inspiradora havia desaparecido, o que causou muitas brincadeiras e risos entre todos os confrades. Mas fomos em frente. O Montrose 2004 foi escalado a 45 minutos do segundo tempo, para substituir o 1990. Na sequência, nosso confrade decano foi escalado para disponibilizar um Cos D’Estournel. Para alegria de todos o escolhido foi o 2003.
Tudo agendado e na mesa uma Vertical de Montrose com 7 safras (1982, 1989, 2000, 2001, 2003, 2004 e 2005) e ao mesmo tempo um pequeno desafio horizontal do Montrose 2003 versus o Cos D’Estournel 2003.
A degustação às cegas
Foi dada a largada. Todos os 8 vinhos foram servidos de maneira aleatória e com uma pegadinha feita pelo coordenador da degustação, pois os dois da safra 2003 ficaram lado a lado.
A degustação iniciou em silêncio total. Aos poucos os participantes foram relaxando e os comentários começaram. O primeiro comentário foi o anúncio por um dos participantes de que havia encontrado o vinho mais antigo da mesa, o Montrose 1982. Não tivemos unanimidade em qual era esse vinho, mas houve consenso nos dois mais antigos. Todos os participantes “encontraram” o 1982 e o 1989. De certa maneira foi mesmo mais fácil, pois esses 2 tintos mostravam mesmo certa evolução, não só na cor, notória, como olfativamente e mais ainda gustativamente. Seus taninos estavam muito mais suaves se comparados com os ainda ultra-jovens tintos da década de 2000. Após passarmos a fase mais fácil da degustação, começamos o debate sobre os vinhos mais jovens. Nesse momento ficou evidente os benefícios que as degustações às cegas podem nos trazer. Tecnicamente falando as safras de 2000, 2003 e 2005 são muito superiores se comparadas com as safras 2001 e 2004, mas isso não ficou claro para todos presentes à mesa, pois tínhamos grandes tintos e a diferença era mesmo pequena entre eles. Pessoalmente todas as minhas pontuações foram superiores a 92 pontos, com o campeão alcançando 96 pontos. Aqui a primeira surpresa, pois os menos valorizados (em cifras no mercado mundial) não se intimidaram com os irmãos mais famosos e disputados. Somente como informação o preço do Montrose 2003 é mais que o dobro se comparado com o 2004, às vezes alçando o triplo.
Além de qualificarmos o que mais gostamos tínhamos a mini horizontal, que foi um dos debates mais interessantes da degustação, ou seja, onde estava o Cos D’Estournel 2003 em meio aquele “mar” de Montrose’s? Sem dúvida foi difícil, mas um dos confrades, inspirado e taxativo detectou o Cos como sendo a amostra numero 1. Bingo!!! O Cos D’Estounel 2003 é mesmo mais intenso e estava mais apetitoso se comparado com o Montrose 2003, que estava mais duro e ainda longe de sua maturidade.
O monumental Montrose 2005 estava mesmo reluzente, firme, suculento e cheio de vida. Um vinhaço que expressou a fruta madura da fabulosa safra 2005. A composição dessa escultura liquida foi 65% Cabernet Sauvignon, 31% Merlot e o restante de Cabernet Franc e Petit Verdot. Foi esse vinho o que mais gostei de todo o painel (96 pontos).
A surpresa boa ficou por conta do outsider 2004, que performou de maneira surpreendente, principalmente se levarmos em conta o quesito Value for Money.
Estava mesmo delicioso e superou alguns de seus irmãos mais afamados. Aqui temos que ressaltar uma característica dos vinhos do Chateau Montrose. Suas vinhas são muito próximas ao Rio Gironde e por isso tem uma excelente drenagem. Comprar esse vinho mesmo em safras não espetaculares é sempre seguro e uma ótima opção. Essa característica faz com que esse Chateau seja conhecido como o Chateau Latour de St Estephe. O Chateau Latour é o vinho de toda Bordeaux que menos impacto sofre no resultado do vinho quando as safras são mais difíceis.
A surpresa, digamos ruim, foi com relação ao Montrose 2000, que para o grupo não mostrou a que veio, pois muito se esperava dele. Para mim não foi mal, mas realmente eu esperava mais dessa garrafa, que também representava uma das safras mais importantes dos últimos anos em Bordeaux. Minha pontuação para esse vinho foi 93 pontos.
Quanto ao Montrose 1989 que teve também um excelente desempenho, vale ressaltar que esse é, de todos os vinhos produzidos pelo Chateau, o melhor dentre todos para os proprietários atuais do Chateau, a família Bouygues.
Pois bem, elaboramos o ranking de todos os vinhos como numa olimpíada, baseado nas pontuações dos participantes, em medalha de ouro, prata e bronze, e o resultado final foi:
Ouro : Chateau Montrose 1982
Prata: Chateau Cos D’Estournel 2003
Bronze: Chateau Montrose 1989 e Chateau Montrose 2005