Coletânea de textos jornalísticos explora o trabalho dos voluntários do Médico Sem Fronteiras em obra realista e desconfortável

No material divulgado para a imprensa do livro Dignidade (vários autores; editora Leya, 268 páginas, R$ 39,90) o seguinte parágrafo me chamou a atenção:

Há quem diga que as pessoas não passam de seres humanos cruéis, oportunistas, violentos e egoístas. Ao abrir esse livro, fica fácil enxergá-las. Mas há também quem diga que existem pessoas que compensam em bondade o que falta nas outras, que vivem para provar que ainda há razão para acreditar na humanidade. E ao abrir esse livro, fica claro, principalmente, que elas são reais”.

Em parceria com a Médico Sem Fronteiras – uma organização médico-humanitária criada em 1971, na França, por jovens médicos e jornalistas, que atuaram como voluntários no fim dos anos 60 em Biafra, Nigéria -, um grupo de renomados jornalistas do mundo inteiro visitaram seus campos de trabalho em vários pontos.

O que posso dizer é que esse é um livro desconfortável, mas fabuloso. Como? Ele consegue, ao mesmo tempo, tratar de maneira realista e crua a realidade do mundo, sem apelar para o sentimentalismo, mas emocionando e nos desconfortando.

Se você ainda acha um absurdo ficar sabendo de malária em alguns cantos mais desenvolvidos no Brasil, imagine uma comunidade boliviana que tem seus sonhos assombrados pela Vinchuca (expressão local utilizada para caracterizar o barbeiro, transmissor da doença de chagas), ou ainda saber que, por ser portador do HIV, você pode ser espancado na Cidade do Cambo.

É terrível imaginar que recursos tão simples e óbvios para a gente – como uma vacina – ainda é algo que não existe ou não está disponível para algumas populações por inúmeros fatores que vão desde a monopolização das empresas farmacêuticas em alguns países até a falta de investimento de governos corruptos.

Pessoa a caminho da unidade de testes de MSF para doença do sono, na República Centro-Africana. A doença do sono, ou tripanossomíase humana africana, ainda acomete muitas regiões da África. A doença é transmitida pela mosca tsé-tsé, comum em áreas quentes e úmidas. Por 13 dias, uma equipe móvel da MSF especializada na doença examinou 4.548 pessoas e quatro receberam tratamento.

Pessoa a caminho da unidade de testes de MSF para doença do sono, na República Centro-Africana. A doença do sono, ou tripanossomíase humana africana, ainda acomete muitas regiões da África. A doença é transmitida pela mosca tsé-tsé, comum em áreas quentes e úmidas. Por 13 dias, uma equipe móvel da MSF especializada na doença examinou 4.548 pessoas e quatro receberam tratamento.

Aqui, não é só o trabalho da organização que é destacado (é destacado, e não floreado), mas o trabalho dos jornalistas, que saíram da sua zona de conforto e foram viver, mesmo que por poucos dias, uma realidade completamente diferente da sua faz crer que ainda existe um pouco de humanidade na Terra.

Pessoas como Eliane Brum, Mario Vargas Llosa, Paolo Giordano, Catherine Dunne, Alicia Giménez Bartlett, James A. Levime, Esmahan Aykol, Tishani Doshi e Wilfried N’Sondé dão com suas palavras voz àqueles que ainda não conseguiram se fazer ouvir. Dos refugiados no Congo, passando por uma voluntária assustada e confusa que encontra alento em uma couve-flor em Bangladesh, pacientes infectados por uma epidemia de Sarampo não vista há mais de uma década no Maláui e grávidas que perderam seus filhos pela falta de assistência em Burundi, Dignidade explora todo esse lado que não conhecemos de lugares que são deixados de lado por governos corruptos ou que exista uma simples falta de infraestrutura governamental para possibilitar que essas pessoas tenham uma vida mais dignas.

Sônia, 11 anos, e Érica, de 5. Todos na família, menos Érica, têm Chagas. Sônia teve reação alérgica e suspendeu o tramento. Não há um medicamento de uso pediátrico, por isso as crianças são mais vulneráveis aos efeitos do tratamento. Isso reflete o descaso da indústria farmacêutica com a doença.

Sônia, 11 anos, e Érica, de 5. Todos na família, menos Érica, têm Chagas. Sônia teve reação alérgica e suspendeu o tramento. Não há um medicamento de uso pediátrico, por isso as crianças são mais vulneráveis aos efeitos do tratamento. Isso reflete o descaso da indústria farmacêutica com a doença.

Drauzio Varella diz no prefácio que este é um livro que “prende a atenção da primeira à última página, porque nos permite entrar em contato com povos de culturas e costumes distintos, acontecimentos surpreendentes e realidades inimagináveis”. E eu posso ir um pouco além: esse livro permite nos conectar com outras realidades ao nosso redor e nos fazer refletir sobre o nosso real papel no mundo.

Vale como uma dica para sair do nosso umbigo e conhecer realidades aparentemente tão distantes e irreais, mas que podem estar ao lado da nossa porta.

fotos: reprodução

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