No início do séc XVII, em torno de 1610, surge em Antuérpia, nas Flandres, um gênero de pintura fascinante: La Chambre d’Art (Gabinete de Arte)
Estas pinturas reproduziam salões repletos de obras de arte, como se fossem pequenos museus particulares, para os verdadeiros amantes das artes.
Época de Rubens (o grande pintor) e dos arquiduques Alberto e Isabel, Antuérpia é o maior porto da Europa e a burguesia endinheirada reafirma a cultura do colecionismo. Grandes coleções são formadas e para se fazer um inventário, uma catalogação e, claro, mostrar prestígio e poder, nasce uma pintura que representa esses “gabinetes de arte”.
Apresentando-se como colecionadores e experts, os burgueses ricos podiam, assim, alcançar distinção nos mais altos círculos sociais. Os primeiros artistas a produzir estas pinturas de coleções foram Jan Brueghel, o Velho (1568-1625) e Frans Francken, o Jovem (1581-1642). Ambos dominavam com excelência a precisão exigida para representações em pequena escala. Artistas que faziam obras monumentais como Rubens, por exemplo, jamais poderiam fazer este gênero de pintura.
Fig 1 – Frans Francken, o Jovem
Gabinete de Arte com uma Família Desconhecida, c. 1615
Coleção Museu Real de Belas Artes, Antuérpia
Este casal desconhecido e seu filho não estão posando em sua própria casa, mas em um ambiente usado pelo artista em outras ocasiões. Não se sabe se estas pessoas são os donos das obras de arte expostas, mas fica óbvio que eles queriam ser retratados como conhecedores e amantes das artes.
São entretanto os quadros de Willem van Haecht (1593-1637) que melhor representam este gênero de arte do séc XVII. Ele trabalhou como conservador de Cornelis van der Geest, um dos maiores mecenas e colecionadores de Antuérpia. É provavelmente sob encomenda deste que van Haecht pinta seus museus imaginários, reunindo em ambientes palacianos cópias perfeitas de inúmeras pinturas e esculturas muito bem conhecidas na época. Ao reunir em seu universo pictórico obras de arte que não pertenciam à mesma coleção, também incluía ricos elementos da vida artística e cultural da cidade. Trazia também personagens da Grécia Antiga, que conviviam com os novos colecionadores abastados, alegoria em voga.
Fig. 2
Willem van Haecht
Appele pinta Campaspe, c.1630
Coleção da Casa de Mauricio, Haia
Em baixo à esquerda, o célebre pintor grego da antiguidade Apelle retrata a concubina favorita de Alexandre o Grande, Campaspe, neste cenário decorado por uma magnífica coleção de arte. O olhar do espectador imediatamente é levado à obra na parede atrás, a Batalha das Amazonas, de Rubens, protegida da luz do sol e da poeira por uma pequena cortina. O colecionador podia abri-la para que os visitantes se maravilhassem com sua pièce de resistance.
Estas referências unem e homenageiam Appele, o maior pintor da Grécia Antiga e Rubens, o Appele dos tempos modernos.
Fig. 3
Willem van Haecht
O gabinete de arte de Cornelis van der Geest, c. 1628
Coleção da Casa de Rubens, Antuérpia
Este gabinete de arte está situado em um suntuoso salão de uma casa em Antuérpia – podemos distinguir pela janela à esquerda navios no Rio Escaut. No primeiro plano à esquerda, o proprietário orgulhosamente apresenta sua obra mestra: a Virgem e o Menino, de Quinten Massys, aos arquiduques Alberto e Isabel. Rubens, à direita do arquiduque lhe dá explicações. À esquerda, atrás de Van der Geest, Anthony van Dyck, conversa com o homem ao seu lado. Na parede atrás, à esquerda novamente a Batalha das Amazonas de Rubens. Sobre a porta à direita a inscrição Vive L’Esprit (Viva o Espírito), evocando vida longa à mente e ao espírito e também um trocadilho com o nome de Van der Geest (geest = espírito). Cornelis van der Geest catalogou assim sua coleção e podia mostrar seus tesouros aos quatro cantos do mundo.
Willem van Haecht reproduziu fielmente pinturas de Rubens, Van Eyck, Breughel, esculturas, moedas, instrumentos científicos, curiosidades, personagens etc com habilidade admirável.
Uma verdadeira aula de história da pintura flamenga, em apenas 130cm².
Detalhe – fig. 3
Willem van Haecht
O gabinete de arte de Cornelis van der Geest, c. 1628
Coleção da Casa de Rubens, Antuérpia
Rubens dá sua expertise sobre a obra Virgem e o Menino, de Quinten Massys, ao Arquiduque Alberto.
Imagens: Reprodução