Um dos livros mais importantes da diáspora africana representa a África como ela é: bela, problemática e mágica
A cultura africana exerce um estranho fascínio sobre muitas pessoas, e eu sou uma delas. Não sei se é algum tipo de remorso diante da colonização ou simplesmente aquele sentimento do mais puro turista de conhecer coisas diferentes: a única coisa que sinto é que a África faz parte da minha alma e que eu faço parte da África.
Por isso, sempre busco leituras e filmes que tratem desse assunto. Tinha apenas 13 anos quando ganhei do meu pai o livro Ébano – Minha Vida na África, que contava os anos em que o jornalista Ryszard Kapuscinski viveu em território africano. Ano passado, li um livro extraordinário chamado Fora das Sombras, de Jason Wallace, e que conta a problemática história e colonização do Zimbábue pelos olhos de um garoto branco e de 13 anos, e que resenhei aqui para o site.
Mais recentemente, tomei conhecimento de O Menino Negro (tradução de Rosa Freire D’Aguiar; Editora Seguinte, 160 páginas, R$ 26,90), escrito por Camara Laye e uma das mais importantes obras que nasceram no contexto nomeado como “diáspora africana”, termo que começou a ser utilizado por conta do grande número de autores africanos que saíram de seus países para conhecer o Ocidente.
A obra de Laye acompanha a infância e adolescência de um garoto criado ao meio dos costumes dos vilarejos da Alta Guiné. Ao mesmo tempo em que ele vai à escola, brinca com seus amigos e vai assimilando os costumes do seu povo, ele experimenta uma série de situações estranhas a um certo olhar: o garoto teme e respeita as cobras que insistem em compartilhar o terreno de seus pais, passa por um ritual coletivo de circuncisão aprendendo a lidar com seu corpo, estuda numa escola corânica e recebe uma formação muçulmana a seiscentos quilômetros de sua terra natal. Ao final de sua jornada, ele se fixa em Paris, cidade iluminada que o converte em escritor.
O mais marcante de O Menino Negro é o modo como Laye conseguiu mesclar a narração cultural e comportamental de uma espécie de “manifesto do tempo quase mágico da infância, da relação profunda com os pais, do contato com os professores, mestres e líderes religiosos, da amizade e das tensões com os colegas, dos rituais que marcam a entrada na maturidade e do primeiro despertar da vida adulta”, como é definido por Lilia Mortiz Schwarcz.
Trabalhando com uma narrativa repleta de detalhes e leve – afinal, o livro começa a ser narrado pelos olhos de uma criança e, à medida que o protagonista vai ficando mais velho, seus questionamentos e linguagem vão ficando mais rebuscados e afinados -, o texto de Laye mais parece uma fotografia ou um filme, conseguindo recriar uma paisagem ou um momento sem uma descrição cansativa ou grandiosa. Veja um exemplo:
Morávamos na beira da estrada de ferro. Os trens margeavam a barreira de bambus que limitava a concessão, e, para falar a verdade, a margeavam de tão perto que de vez em quando as fagulhas que escapavam da locomotiva punham fogo na cerca; era preciso ir correndo apagar o início de incêndio se não quiséssemos ver tudo se queimar. Esses alertas, meio assustadores, meio divertidos, chamavam minha atenção para a passagem dos trens; e, mesmo quando não havia trens – pois a passagem dos trens, nessa época, ainda dependia inteiramente do tráfego fluvial, que era dos mais irregulares -, eu passava longos momentos contemplando a via férrea. Os trilhos brilhavam violentamente sob uma luz que, naquele local, nada filtrava. Aquecido desde a aurora, o lastro de pedras vermelhas ficava escaldante, a tal ponto que o óleo que caía das locomotivas logo secava e dele não sobrava nem vestígio. O que atraía as cobras seria esse calor, que parecia um forno, ou o óleo, o cheiro de óleo que, apesar de tudo, subsistia? Não sei. O fato é que volta e meia eu flagrava as cobras rastejando sobre aquelas pedras cozidas e recozidas pelo sol; e fatalmente acontecia de as cobras penetrarem na concessão.
Essencial para quem tem interesse em conhecer mais da cultura africana, O Menino Negro é um livro capaz de marcar por apresentar mais da cultura de uma região que a gente quase não conhece (a Alta Guiné), por trazer uma visão de alguém que veio de lá, e não algo romanceado ou floreado por parte de um “turista” e também por mostrar a África como ela é: bela, problemática e mágica.
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