As diferentes faces de uma mesma história

Van Gogh

“A noite estrelada” – Van Gogh – Fonte: Acervo Museu de Arte Moderna, NY, EUA

A testemunha:

De cabeça baixa, todos voltam, após a pregação, para a casa sob a noite iluminada por alvos e cintilantes pontos. Uma pequena garota, desatenta, na iminência de seu retorno ao lar, após pular o primeiro degrau da soleira, atropela-se e tropeça. A consequência é imediata e o tombo é certo. Sua mãe levanta-a com calma e as duas entram, conversando. Parece que a queda não abalara a criança, e sim a mãe.

A Mãe:

Duas lotações, e mais cinco quadras para encontrar Deus. Duas lotações, e mais cinco quadras para retornar e cumprimentar o marido. Pensa cada vez mais no futuro de suas crias, e no legado de uma existência tão fiel, mas tão severa. O que fazer para o jantar? Estará ele de bom humor? Comerá a comida? Será que está feliz? [pensamentos cessam]

Levante, menina! “Mãe, o que são esses pontos no céu?”. São estrelas. “E o que são estrelas?”. São bolas de fogo que vivem no espaço. “Bolas de fogo? Os dragões soltam bolas de fogo. Tem vida no céu?” [as duas entram em casa]. Não, nem nunca terá, só se Deus quiser um dia. “E então quem muda as bolas de fogo e a lua de lugar?”. Deus, minha filha. Vá tomar o seu banho, você precisa jantar. “Ele não se queima?”. Pare de bobagens, vamos jantar daqui a pouco. “E quem faz o jantar para Deus?”. Ele não precisa jantar! “Ele toma banho?”.  Não. Ele não precisa. “E por que eu preciso?”. Vá para o banho!

A filha foi para o banheiro, ela para a cozinha e o marido “foi” para o seu pensamento, silencioso. Tudo como deveria ser.

A Garota:

Enquanto caminha pelas ruas, depois da cansativa missa, acha os “quadrados” do chão engraçados porque tem um nome pomposo, que nem consegue falar [esboça, com a boca, o desenho sonoro de “paralele…”] e, no entanto, todos pisam nele, cospem, desvalorizam-no. Tenta impressionar ao repetir o feito de hoje à tarde, após muito treino: pular, com os dois pés juntos, o segundo degrau da escadinha. Os joelhos tortos, contudo, não a deixa concluir o movimento. As costas batem, de maneira dolorosa, na borda do primeiro degrau. Mas não sente dor, já que se encantara com os pontos brilhantes no céu.

“Levante, menina!”. [Nossa, queria morar lá no céu. É tudo azul de dia e tão brilhante e bonito à noite. Será que alguém mora lá? Mamãe sempre diz que Deus mora lá em cima]. Mãe, o que são esses pontos no céu? “São estrelas”. E o que são estrelas? “São bolas de fogo que vivem no espaço”. [Nossa, o espaço pode pegar fogo, preciso tomar cuidado! Mas quem será que fez esse fogo? O tio Abílio só bota fogo no terreno dele, acho que ele não viaja para o espaço para queimar os terrenos por lá. Tem que ser alguém que voa. O dragão voa e solta fogo! Mas Deus não viveria com um Dragão].

Bolas de fogo? Os dragões soltam bolas de fogo. Tem vida no céu? [as duas entram em casa]. “Não, nem nunca terá, só se Deus quiser um dia”. [Mas Deus não mora lá em cima? Ele só pode morar lá se Ele mesmo quiser? Mas e se ele não quiser? Então não tem ninguém. Quem gostaria de morar sozinho?]. E então quem muda as bolas de fogo e a lua de lugar? “Deus, minha filha”. [Acho que ela não entende que Deus não pode estar lá! Ninguém vive sozinho]. “Vá tomar o seu banho, você precisa jantar”. Ele não se queima? “Pare de bobagens, vamos jantar daqui a pouco”. E quem faz o jantar para Deus? [Será que ele janta sozinho? Será que ele só come a Lua? Ele não pode viver sozinho!]. “Ele não precisa jantar!” Ele toma banho? “Não. Ele não precisa” [Nossa! Será que no céu moram os loucos? Ele precisa de banho!]. E por que eu preciso? “Vá para o banho!”. [Depois que eu terminar de tomar banho, vou perguntar se eu posso viver no céu! Quero ser louca e ter muitas pessoas rezando para mim. Enquanto isso, vou orar para que minha mãe não sofra ao saber que Deus não existe, ou que Ele é ameaçado por um dragão].

Antoine-de-Saint-Exupéry

 

Notas do autor:

Leitores, como escreveu Antoine de Saint-Exupéry, um exímio piloto e um inalcançável escritor, “para enxergar claro, basta mudar a direção do olhar”.

A reflexão dessa publicação reflete o que vão encontrar nas próximas visitas. Aquele que se propuser a ler terá uma infinidade de perspectivas. Você pode decidir se pretende participar das histórias como testemunha, como um adulto ou como uma criança. Espero, somente, que, se optar por uma perspectiva, não fique cego. O olhar crítico sempre é necessário.

 

Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944) – Fonte: Enciclopedia Brittanica