As referências religiosas e históricas da expressão “outra face” geralmente nos remete, quer à humildade de dar um outro lado do rosto à bofetada alheia – o que pode ser um tremendo sinal de vitimidade, comportamento pouco considerado nos primórdios da civilização – quer a um quase oposto: a hipocrisia de uma faceta nossa escondida por medo, covardia ou interesse em manter na sombra, o que pode não ser aprovado, as atitudes, inseguranças e fragilidades não aceitas ou catalogadas de forma negativa pelos grupos manipuladores e que não perdoam o que não segue conforme os preceitos da Sociedade do Espetáculo. Quando essa face outra é tão mais instigante, tão mais ampla, nominativa do mistério que nos compõe, da inquietação, essa força linda que conduz à inconformação e à busca.
Seja na descoberta individual, através da corajosa intenção de enxergar o que realmente somos ou pelo menos, tentar saber, assim como tentar viver de acordo com aquilo que somos, seja na aceitação de uma outra presença em nós, aquela que se contrapõe ao estabelecido e que nos leva a um, ora delicioso encontro; ora às desagradáveis surpresas. De um jeito ou de outro, a face que não está na frente do espelho é sempre a mais interessante para quem não troca interesse pela existência banal, para os que não se rendem, entediados e exaustos a um cotidiano massificado e indolor, que sugere como primeira lição que nada mude. A ponto de criar uma identificação perigosa com o hábito, que acomoda e confunde.
Há algum tempo, num jantar de festa, uma senhora aproximou-se para conversar sobre minhas aulas e veio com um papo conhecido “sabe, eu não preciso de análise, de avaliação comportamental, nada dessas coisas” (e grifou o coisas com sutil desprezo). E continuou “veja como eu conheço meu marido, ele foi se servir no buffet. Mesmo antes que volte já sei o que trará no prato” E a senhora definiu exatamente a composição do jantar do parceiro, o que jamais esquecerei: uma fatia de rosbife, um pedaço de torta de palmito e meia taça de vinho tinto. Assim como não dá para esquecer o olhar de triunfo da consorte ao topar com a minha expressão de pasmo. Seis meses depois, o marido foi embora com outra. Ela cometeu o erro crasso de confundir o conhecer uma pessoa como o conhecer os hábitos que essa pessoa tem. Aliás, uma das confusões quase sempre fatais que se fazem nos relacionamentos humanos.
A outra face está acessível ao outro? Nem sempre, mas a medida do interesse que o amor contém, nos ajuda a procura-la. Assim como a auto-estima, da qual vamos falar tanto neste livro, ajudando a afastar o auto-engano, também nos faz correr atrás, na consciência de que ela nunca surge por inteiro, não se descortina num ato ou se faz ver de repente no espelho. Revela-se aos mínimos, descobre-se aos poucos e como a lua em fase crescente, apenas sugere o que ainda não foi completado do círculo. Um dia, com muito esforço, ferrenha batalha para não entrar na facilitação do conhecido, a outra face passa a ser “esta face”. E quando achamos que o trabalho está pronto, que o ciclo se completou e que agora nos conhecemos inteiramente, uma outra face passa a dar sinais que chegou, que está lá, escondida para ser novamente descoberta. E começa tudo de novo. Quem sabe, podemos dar a esse movimento, o nome de evolução.